terça-feira, 12 de novembro de 2013

PAIXÃO DIVINA

...o amor de Cristo nos constrange...  II Coríntios 5:14

Nosso texto é o salmo 139. Recomendo sua leitura inteira antes de continuar.

A força central da revelação deste salmo reside nos versos 13 e 14, que funcionam como um eixo, em torno do qual o pensamento ( e sentimento ) do salmista gira e dá vôos magistrais dentro da marcante adoração gratulatória com que ele se dirige a Deus. Estes versos encerram a consciência de íntimo pertencimento divino; é a mais sublime confissão sobre a soberana vontade criadora de Deus, e ainda aponta uma viva certeza de que o Criador projetou sua vida a partir de um plano básico, inspirado em Sua exclusiva vontade e propósito. Isto nos remonta de imediato a Efésios 1:4; 1:11 e 12- ...nos escolheu nEle, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante Ele; e: nEle, digo, no Qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito dAquele que faz todas as cousas conforme o conselho da Sua vontade, a fim de sermos para louvor da Sua glória, nós, os que de antemão esperamos em Cristo.

Basta uma associação imediata entre os termos do salmista e os do apóstolo Paulo, e a mensagem se completa: Tu formaste o meu interior... por modo assombrosamente maravilhoso me formaste... E isto, antes da fundação do mundo... a fim de que eu seja para o louvor da Tua glória,  e o fizeste, segundo o conselho de Tua vontade.

Esta aguda consciência da vontade criadora de Deus direcionada ao homem singular, produz, inevitavelmente, esse espírito rendido por uma visão pessoal de pertencimento a uma Vontade Maior, porquanto divina.

A partir deste eixo, a adoração sobe desde o primeiro verso e se dilata em expressões de admiração e comprometimento, que se revelam a partir do verso 14.

O verso 1 registra o senso de direito divino. Tu examinas a peça que criaste. Dito na expressão: Tu me sondas e me conheces.  Em que nível? Seria como um técnico? Não! Mas como o apaixonado construtor que admira sua obra e dela cuida para descobrir possíveis ranhuras ou desgastes que possam vir a arruiná-la. O exame é penetrante, profundo: Tu sondas. Uma avaliação se segue: e me conheces,  e então começa o laudo da pesquisa:
V.2 - sabes; penetras;
V.3 - esquadrinhas;
V.5 - cercas.

Avaliemos cada linha desse laudo.
Nas considerações registradas no v.2, o salmista usa termos cuidadosamente escolhidos: sabes quando... Ele fala de uma sondagem divina que ultrapassa o mero tomar ciência do fato, para antecipar-se a ele. É a idéia denunciada no advérbio quando. Quando, aponta mais para a motivação do que para o ato mecânico, o que reforça a afirmação do v.1 que diz de Deus: Tu sondas... pois a idéia pretendida é fixar a imagem do Deus amante, que não busca assistir a mecânica da vida da obra que produziu, mas suas motivações, preferivelmente. A mensagem do v.2 poderia ser assim melhor entendida: Tu sabes por que me assento e por que me levanto. Isto é provado na construção que arremata a mensagem: ...de longe penetras os meus pensamentos, ou seja, a causa de minhas ações, ou a motivação por trás delas. O versículo 2 poderia ter sua mensagem resumida numa só oração: Tu me assistes,  pois os verbos saber e penetrar falam de uma liberdade própria a um amante muito íntimo, mesmo apaixonado, que está intensa e proximamente envolvido com o objeto de sua paixão. Daí o verso 3 servir de reforço e complemento à primeira mensagem, trazendo essa assistência ou cuidado divino para particularidades ainda mais pessoais e privativas: esquadrinhas o meu andar e o meu deitar e conheces todos os meus caminhos,  pois andar e deitar vão ilustrar os movimentos ligados às necessidades mais prementes e mais cotidianas da vida. Falam das decisões pessoais quanto a dar continuidade ao propósito primeiro lembrado no v.2:  levantar, ou quanto a cessar toda a iniciativa, assentar, posto que andar é o movimento que se segue ao  levantar e deitar é o que mais de perto se segue ao assentar. Ainda o v. 3 está dentro da mensagem: Tu me assistes. Em resumo, o salmista pensa no seu Deus como o Deus companheiro, o Emanuel revelado por Isaías (9:6), que não somente está junto como presença assegurada, mas que também participa da mecânica da vida do Seu servo, sem cercear, sem coibir, mas assistindo com paixão. Tais idéias têm reforço em salmo 121:5-  O Senhor é Quem te guarda, o Senhor é tua sombra à tua direita,  e também em Atos 17:28 - Pois nEle vivemos, e nos movemos, e existimos...

Que surpreendente revelação: Deus companheiro, é nosso Deus junto e participativo; junto e interessado. Não mero assistente, semelhante ao cientista diante de sua cobaia, mas responsavelmente comprometido, mesmo envolvido.  O salmista está adorando o seu Deus que vela por ele com esmero e paixão. A linguagem toda aponta paixão divina. O verbo esquadrinhar indica essa imagem de um examinador afoito, sedento, que faz um trabalho minucioso na perícia da verificação.

A paixão divina por Seu servo aumenta em força quando o salmista percebe que o seu Deus, que formou o seu interior, sabe de antemão como esse interior reage, daí ele dizer no v. 4: - Ainda a palavra não me chegou à língua, e Tu, Senhor, já a conheces toda. Diz, muito mais do que da onisciência divina, de Sua paixão, de Sua observação apaixonada. E isso pode ser visto ainda no fato de que o salmista entende que Deus conhece o princípio e o fim ( ou propósito ) de seu pronunciamento. Bem, ele já havia dito que de longe o Senhor penetra os seus pensamentos, ora, o Deus que conhece a intenção, muito mais depressa deve avaliar a ação decorrente. Mas a idéia básica contida no v.4 é aquela que aponta Deus como o pai cuidadoso que Se apressa a avaliar as reações do filho, cujo caráter Ele conhece bem. O salmista está falando também da vontade que se verbaliza, que se externa em declarações ou proclamações; a vontade pessoal externada ao mundo, visto que nossa boca é o veículo mais inconteste de expressão de nossa vontade.  Portanto o salmista está dizendo: Tu conheces, Deus, toda a minha vontade antes mesmo  que ela entre para o domínio do conhecimento dos homens.

O v.5 fecha todo esse núcleo de revelação, quando chegando ao clímax de sua adoração admirada, o salmista registra que seu Deus reage a todo esse grande acervo de conhecimento íntimo a seu respeito, correndo para proteger sua vida, e ficar ainda mais junto: Tu me cercas por trás e por diante e sobre mim pões a Tua mão.  É como se ele dissesse: Em face de saberes tudo que sinto e pretendo, Tu corres a me amparar, para me livrares dos riscos que minha vontade limitada pode acarretar para mim. Ou poderíamos ainda entender que Deus Se aproxima mais do Seu servo, com carinho extremado, após sondá-lo tão intimamente para aproximá-lo mais de Si, como a ama que acaricia seus filhos. Esta imagem do cerco protetor divino, em torno do servo, foi o grande motivo de revolta para Satanás quanto à vida de Jó: Acaso não o cercaste com sebe, a ele, à sua casa e a tudo quanto tem?... (Jó 1:10). Satanás constatava que havia uma proteção divina em torno de Jó que o impedia de tocar nele. É possível que nessa revelação do salmo 139:5 possamos ver referência a nobres promessas da altura do salmo 34:7 e em I João 5:18, que dizem, respectivamente:  O Anjo do Senhor acampa-Se ao redor daqueles que O temem e os livra;  ...Aquele que nasceu de Deus o guarda, e o malígno não o toca.

O superlativo da adoração é visto no hino que encerra todo esse vasto pensamento, registrado no v.6: Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim: é sobremodo elevado, não o posso atingir.

O trecho compreendido pelos versos 7 a 12, ainda não cogita simplesmente de outro atributo divino como onipresença, mesmo que esta revelação esteja implícita nele, mas seguindo pela mesma ótica do salmista, continua a adoração que reconhece o amor apaixonado de Deus por Seu servo, agora trabalhado com imagens onde o entusiasmo, mesmo alegria do salmista, despontam ante a constatação de que nada ou circunstância alguma pode escondê-lo dos olhos amantes do seu Deus, ou mesmo afastar Deus dele. Em resumo, este trecho prega que nem ele pode separar-se desse inexorável amor divino, nem Deus o consegue, dada a força do Seu amor. Isto nos faz lembrar de imediato da magna proclamação de Paulo em Romanos 8: 35 a 39 acerca desse amor: Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito: Por amor de Ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos considerados como ovelhas para o matadouro. Em todas  estas cousas, porém, somos mais que vencedores, por meio dAquele que nos amou. Porque eu estou bem certo de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem as cousas do presente nem do porvir, nem os poderes, nem a altura nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. Aleluia!

E esta convicção é delineada pelo salmista nas imagens alegóricas que ele cria, para descrever a tenácia desse amor:

v.8 - êxtase e depressão;
v.9 - conquista ou aventura;
v.11 e 12 - frieza e comunhão.

Vejamos isto, mais detalhadamente.

A idéia contida no v.7 não é a perspectiva de distanciar-se de Deus. Isso distoaria de todo o espírito do salmo. A idéia hipotética acusa a proximidade tão estreita da presença divina revelada em amor, que seria impossível tanto ausentar-se dEle quanto esconder-se (fugir). E então as alegorias despontam para ilustrar a mensagem, começando com a visão do êxtase, contrastado com o baixio da depressão, os dois extremos da psiquê humana, que podem, por ser extremos, tanto afastar o homem de Deus, numa euforia de autossuficiência (subir aos céus) quanto no sentido oposto, a depressão que geralmente sucede a euforia, prostrando o ser humano e levando-o a maldizer a fé, e assim abrir mão da esperança (mais profundo abismo). A experiência do salmista lhe ensina que nem eufórico, nem abatido, como quem se acha em profundo abismo, ele consegue ausentar-se de Deus, porque numa ou outra situação, lá estás, diz ele ao Senhor. Deus estaria nesses extremos humanos. De fato, ainda que pensemos soberbamente que estamos tão bem a ponto de abrirmos mão daquela dependência consciente do Altíssimo, que nos faz andar com humildade em Sua presença, Ele não arredará pé de nossas vidas, porque não pode negar-Se a Si mesmo. Ou, pensamos talvez que afundados nos baixios de nossos sentimentos acossados pela culpa ou frustração, solapados pelas vicissitudes ou acachapados pelo Tentador, teríamos sido abandonados por Deus; a promessa eterna se adianta a dizer: ...por baixo de ti estende os braços eternos (Deuteronômio 33:27), de maneira que à luz de tão segura promessa, é certo que não haverá abismo profundo demais, ao qual Ele não possa descer para nos amparar em Seus braços. E mais: Por força da alegoria criada pelo salmista, poderíamos ainda dizer que mesmo quando o abismo nos pareça interessante, a ponto de pretendermos nele fazer nossa cama, ainda assim e ali, Ele insistirá em nos achar, porque não desiste de nós. Via de regra quando depressivos, e especialmente por causa do pecado, reagimos de imediato expulsando Deus de nossa vida. O salmista nos apresenta mais um dado nessa verdade: Ele estará lá, também.

A imagem seguinte, proposta pelo v.9 fala de corrida, conquista e aventura, através dos símbolos:  asas da alvorada e confins dos mares. Outras interpretações cabem aqui, mas quer me parecer que conquista e aventura estão mais presentes, porque estas idéias falam de independência, ainda um estado de alma onde o homem parece estar tão bem que dispensa Deus de sua jornada ou experiência. A despeito do estado geral, ele descobre que Deus há de Se manifestar nessas circunstâncias como guia e arrimo. Isto nos lembra, num outro nível, a experiência de Paulo e seus companheiros no naufrágio relatado em Atos 27, se bem que ali a idéia de aventura não é pertinente. Mas vale lembrar que em tal situação Paulo pôde experimentar a realidade do v.10 deste salmo, comprovando que o seu Deus ali estava, como apoio, fortaleza e guia, virando a história de sua calamidade, e sendo-lhe por segurança num contexto de caos generalizado, quando todas as direções estavam desprovidas de referência ou resquícios para a esperança. O Senhor manifestou-Se precisamente dentro do caos, e mudou o rumo de toda aquela desastrosa situação. Algumas vezes nossa vida singra mares tumultuados, por aventuras mal traçadas, impensadas, ou pouco pretendidas, e somos colhidos pela fatalidade que no seu bojo traz um sentimento infeliz de culpa ou auto-acusação, impingindo-nos a idéia de que sequer podemos contar com Deus ou a Ele recorrer, uma vez que a decisão inspirou-se exclusivamente em nossa vontade cega e surda. Mas o salmista nos revela que o amor divino O põe em cena, a nosso favor, ainda assim disposto a ser guia e apoio. Glória ao Seu Nome!

No entanto, a espiritualidade pode sofrer reveses cruéis e perigosos, como os vv. 11 e 12 traduzem para nós com o dualismo trevas e luz. Qual seria o sentido que trevas ocupam no pensamento do salmista quando ele pretende que elas não nos esconderão de Deus? Seria operação do mal? Seria o pecado? Frieza espiritual? Talvez qualquer dessas idéias ou mesmo o conjunto delas todas. Voltando à carga quanto a um dos possíveis sentidos para abismo, no v.8, trevas podem ter o significado mais apropriado a pecado, conceito que entendemos como obstáculo à nossa experiência de comunhão com Deus. A idéia conclusiva do salmista é que nem trevas o encobrirão para Deus, porque serão convertidas em luz diante dos Seus olhos, ou absorvidas por Sua luz: ...as trevas não Te serão escuras. Deus vence o entenebrecimento mesmo do pecado, para ver ou achar aquele a quem ama. Enfim, ele entende que nada nem ninguém pode afastá-lo do amor de seu Deus, experiência com que Paulo concorda plenamente como já foi visto.

A partir do v. 13 a linguagem do salmista assume um tom ainda mais intimista, como se conferir a experiência de ser amado por Deus o tornasse mais consciente do lugar que ocupa no coração e pensamento divinos. A esta altura, vale lembrar que o salmista está adorando a Deus, pesando na sua experiência de vida a manifestação do Seu amor, consciente de suas fraquezas e pecados, e a despeito disso, mantendo seu lugar de adorador leal, o que nos alcança a todos nós que podemos dizer com Paulo: ... o Filho de Deus que me amou e Se entregou por mim.

Esta consciência desse amor que ultrapassa nosso entendimento, deve correr pelas vias do que Jesus pretendeu como adorar ao Pai em espírito e em verdade.

O salmista volta sua visão agora para o fato de existir, como obra da mão divina, realização de Sua vontade. Ele poderia ter sido uma não-existência, simplesmente não ter vindo a acontecer na vida. Mas prefere ver sua existência como um determinismo divino, que decidiu criá-lo e assistiu a formação embrionária do seu ser passo a passo. Esta tomada de consciência de ser criatura pretendida, processada e assistida por Deus em sua feitura, amplifica seu sentimento adorador. Sua adoração agora galga alturas de admiração grata: Eu Te louvo porque me fizeste de modo especial e admirável. Tuas obras são maravilhosas! Digo isso com convicção (v.14). Este homem era grato a Deus por ter criado o seu interior. Ele usa todos os recursos da gratidão que tanto deve agradar ao Deus que nos criou, e que nos faltam quando decepcionados conosco mesmos, murmuramos contra o que somos e sentimos. A consciência de criação pessoal e singular, no coração crente, deve constituir o culto que Ele mais aguarda desse coração.

Nos versos 17 e 18, como que por uma inevitabilidade, o salmista assume querer envolver-se mais no conhecimento dos pensamentos de Deus, como a dizer que deseja ser participante dos pensamentos divinos, fazer parte deles. Mais adiante, ele vai concordar com Deus quanto ao fato de ser tão indispensável ser sondado e conhecido intimamente pelo Senhor, como a dizer que essa não é uma experiência para ser temida, antes desejada, porque foi a partir de sua convicção de ser sondado e conhecido por Deus, que  ele pôde experimentar a revelação sublimadora do Seu amor singular.

Fica evidente que o salmo 139 descortina para nós, muito mais que vias de adoração, a consciência possível e necessária de pessoalidade na relação com o Senhor, que em Cristo nos conquistou para nos levar a viver nas dimensões de uma proximidade tal com Ele, que deixa longe culpa, medo e insegurança, tristes sombras de uma caminhada que foi proposta para ser feita na luz do Seu rosto.

Se foi possível ao salmista, é  possível a todos nós que cremos que Cristo morreu e ressuscitou para nos levar a ver o rosto do Seu Pai.

Com carinho,

Pr. Cleber Alho