sexta-feira, 6 de março de 2015

AQUELE CIRENEU

Enquanto O levavam, tomaram um certo Simão de Cirene, que vinha do campo, e impuseram-lhe a cruz para levá-la atrás de Jesus. – Lucas 23:26

Este personagem, citado em cada um dos evangelhos sinóticos, tornou-se notável por este episódio sui-generis. Era de Cirene, importante cidade ao norte da África onde residiam muitos judeus e prosélitos do judaísmo. Era conhecido e estava residindo em Jerusalém, pois os textos se referem ao que poderia ser seu trabalho, como um homem do campo, e citam seus dois filhos como se fossem conhecidos por todos: Alexandre e Rufo.

Simão será lembrado para sempre como o homem que aliviou o sofrimento do Senhor levando por ele a cruz na qual seria morto. Somente João nos informa que Jesus carregou a própria cruz, donde se deduz que a certo momento comprometeram o cireneu a ajudá-Lo porque não suportava mais seu peso.

Um ponto de realce reside no fato de que momentos antes, um outro Simão que vivia tão próximo, abandona Jesus à sua própria sorte. Este, que sequer O conhecia, aproxima-se e toma Sua cruz.
Penso ser importante ocuparmos nosso lugar junto àquele Simão naquele momento, que voltando-se do campo, talvez cansado, tenha se juntado à turba barulhenta que formava o cortejo rumo ao Gólgota. Quem sabe curioso para ver quem seriam os três condenados à morte sob a égide de Roma, ou por ser aquele seu único caminho de regresso à casa. Acontece que estava lá, e com certeza aproximou-se do condenado ferido, o único ultrajado por conta da tortura previamente sofrida. Mas, desafortunadamente, aproximou-se mais do que deveria.

Penso no que pode ter-lhe ocorrido, ao colocar o pesado madeiro sobre os ombros. Sabia que levava a haste vertical que receberia o corpo do desconhecido condenado. Mas longe estava dele saber que prefigurava cada um de nós, substituído pelo Filho de Deus naquele patíbulo, para receber o juízo divino sobre o pecado de todos, e operar a redenção por Sua morte.
Penso também no fato de que sob tal peso ele pode ter sentido angústia e até raiva de si mesmo, por ter se aproximado tanto, a ponto de estar à mão para ser usado pela soldadesca romana. Mas agora, sob imposição, nada mais restava a fazer senão carregar o madeiro até o alto da elevação. Como consolo restava pensar que Outro seria pregado nele, e sua missão encerraria quando lá chegasse.
Mas é essa aproximação demasiada e esse adjutório forçado que nos deve ocupar a mente sobre a narrativa do texto. Não fôra o fato de estar sob ordens da milícia romana, o cireneu poderia ter dito: “Não. Eu nada tenho a ver com essa cruz. Foi justamente Esse mesmo homem quem disse que ‘cada um deve levar a própria cruz’, portanto, nada tenho que fazer aqui.”

De fato, Jesus afirmou que devemos levar nossa cruz. E aí criou uma metáfora em que convém pensar.

Qual sentido damos à expressão de Cristo quando determinou: “Se alguém me segue, leve a sua cruz”? Tornou-se um dito popular pensar no carregar a cruz como um fardo imposto pela vida através de suas vicissitudes. A cruz assim metaforiza o que outros dogmas pretendem como karma ou destino. Dificilmente alguém pensa em sua “cruz” como consequencial, resultado de sementeira cuja colheita se mostra desprazerosa e sofrida. Mas a questão em foco não é o significado subjetivo das cruzes, e sim o fato de que uma cruz impõe-se a cada um de nós, como o patíbulo onde nossa jornada deve ser expurgada de seus desatinos, pecados ou missão existencial assumida.
Lembremos que havia mais dois condenados andando sob o peso de suas próprias cruzes. O que se depreende é que a ajuda imposta a favor de Jesus devia-se a seu estado de extremo esgotamento físico depois do Getsêmani, noite insone e torturas várias. A cruz tinha o mesmo tamanho para os três e o Filho de Deus passara a vida acostumado a virar toras de madeira pesadas em função de sua profissão temporal. No entanto, para Ele aquela cruz tornara-se pesada em excesso, devido ao seu esgotamento. Impossível continuar a levá-la mas imprescindível fazê-lo porque cabia cumprir-se o fim em vista: a crucificação. Aqui há uma metáfora clara para todos nós: A cruz tem o mesmo tamanho e peso para todos. Mas alguns de nós tornam-se fracos para ela, dadas circunstâncias adcionais, ou escassez de forças (de sentidos diversos).

Simão é o ajudador à mão, porque estava próximo. Chamo a atenção para o fato de que havia uma turba formada pela soldadesca e outros homens e mulheres que até choravam pelo Senhor em Seu sofrimento. Mas a impossibilidade de Jesus mover-Se sob o peso da cruz, incomodou os soldados que se deram conta de que outro deveria fazer isso por Ele, para que aquilo chegasse a termo. Então servem-se de quem estava próximo: o cireneu.

Provavelmente ele estava mais à mão, mais próximo que os demais observadores. Onde os discípulos? E os mais chegados? Já citamos que dentre estes, outro Simão já havia tomado ampla distância da cena.

No percurso da vida sucumbimos às vezes sob fardos de dor, de erros, de sofrimentos físicos, morais, sociais. Alguns acabam por se revelar mais fracos que o peso imposto pela vida. Mas, por pior que estejam, precisam chegar à consumação da jornada, ao seu próprio Gólgota. Todavia, impossível continuar, sem o socorro de um cireneu. Onde ele está?
Ao tomar a cruz de Cristo sobre seus ombros, Simão de Cirene sem o saber estava cumprindo a máxima do Senhor quando disse: “Se alguém o obrigar a caminhar uma milha, vai com ele, duas”.

Bem, para ser um cireneu nesse momento é necessária capacidade de perceber o que ocorre com o outro; é necessário aproximar-se tanto dele que sua cruz fique visível, à mão; é necessário emprestar o ombro para erguer a cruz e ajudar a seguir rumo ao Calvário. Há um imperativo apostólico que corre nessa direção: “Levem os fardos pesados uns dos outros e, assim, cumpram a lei de Cristo” (Gálatas 6:2).

O que ficará em registro é a memória eterna desse socorro bem presente em meio à tribulação.

Só servem como cireneus aqueles que vêem a possibilidade de assumir a cruz alheia como parte da sua e com uma visão divina de cruz como cruz, não karma ou destino


Simão me ensina que, por constrangimento ou imposição, há sempre lugar para a cruz do outro junto à minha, se eu perceber seus extremos e me aproximar de sua peregrinação suficientemente, porque, de certa forma, a cruz do outro tem algo de meu.