Nossos textos são Gênesis 22:1-18
e Hebreus 11:17-19.
Estamos familiarizados com a
linguagem do Evangelho na boca de Jesus quando Ele diz: Se
alguém quiser vir após Mim, negue-se (renuncie) a si mesmo... (Mateus
16:24). Embora seja lugar comum na vida cristã a dificuldade para entender e
aplicar a abrangência dessa renúncia, alguns de nós a tratam com o caráter de
um sacrifício.
Mas há uma distinta distância entre
as idéias qu esses termos encerram. Na própria expressão de Jesus, a renúncia
requerida é quanto a si mesmo, ao que se é e se tem em conta. Mas sacrifício
implica em oferta que se entrega, que se perde para alguém. Então, basicamente,
a diferença reside em entregar-se e entregar algo de si.
Um exemplo clássico desse entregar
algo de si está na “queixa”informada por Amós, quando afirma que de seu espaço
profissional Deus o tirou para ser profeta.
Há quem interprete que a filha de
Jefté (Juízes 11:37) sacrificou seu direito ao casamento para atender ao voto
precipitado feito por seu pai.
Paulo fala daqueles que
voluntariamente assumem o celibato para servirem ao Senhor, e vários outros
exemplos poderiam ser citados na Bíblia de vidas que levaram ao sacrifício o
que tinham por direito, em oferta voluntária a Deus.
A dramática história de Abraão e
o sacrifício requerido por Deus quanto à vida de Isaque, que assombra quantos a
lêem, reproduz para nós os detalhes que implicam num sacrifício. Por mais que
este evento nos impacte como absurdo, ele nos descortina os movimentos pertinentes
a um sacrifício voluntário a favor de Deus.
Nesta história de Abraão,
suspeita-se de um litígio encenado entre Abraão, o adorador, e o Deus adorado.
Algo como Deus ter pedido Isaque a Abraão por conta do lugar que Isaque passou
a ocupar na vida de seu pai. Embora esse seja um tema bastante explorado, é
especulativa a interpretação.
Mas, razões divinas à parte,
nosso foco é o sacrifício em andamento.
Baseados no fato de que somos
apontados em Romanos 4:12 como aqueles que “andam nas pegadas da fé que teve
nosso pai Abraão”, fico a pensar como seria pisar sobre essas pegadas no
terreno do sacrifício.
Ao pensar, a primeira coisa que
me chama a atenção é o fato de que Isaque, além de ser o filho que o próprio
Deus salienta como “único” e “a quem amas” (mesmo sabedor de que havia Ismael),
ele era a expressão inconteste da bênção e cumprimento de promessa na vida de
Abraão. Uma promessa sobre a qual decorreram mais de 20 anos e na qual o servo
de Deus investiu muita fé. Não só. Isaque ia além da personificação de bênção
para ocupar o lugar daquele que seria o canal do cumprimento da Promessa por
excelência que Deus fez ao seu pai. E devemos lembrar que as condições em que
ele nasceu, eram por si mesmas tão milagrosas que inviabilizavam qualquer
concurso humano.
Pois bem: o que foi requerido a
Abraão, era que sacrificasse sua bênção, diretamente vinda das mãos divinas.
E ele assume atender.
A cena é exposta ante nossos
olhos com requinte de detalhes: Deus fala com Abraão e ele passa a noite com
essa mensagem na cabeça. Que noite deve ter sido! Imagino se Abraão ficou
tentando achar uma brecha qualquer na ordem divina para interpretar de outra
maneira menos trágica a decisão que se lhe impunha.
Mas, pela manhã está decidido, e
convoca servos ajudadores para a jornada. Passa em revista o que teria de levar
como imprescindível a um holocausto: brasas, lenha e cutelo. Também a vítima: seu
filho; sua bênção. Havia algo mais a levar: o silêncio sobre a finalidade
daquela jornada.
Isaque, rapazola esperto, no
início do caminho passa em revista, por sua vez, os apetrechos. Ali estavam
lenha e brasas. Ali estava o cutelo. Mas, e o animal a ser morto e queimado?
Estaria o pai tão velho que teria esquecido o elemento mais importante?
A fala do filho deve ter doído
fundo no velho pai quando chegou aos seus ouvidos: __Meu pai – “Abhí”, ele
teria dito na língua paterna.
__Sim, meu filho – “benní”, teria
dito Abraão. Expressões de ternura entre filho e pai.
__...onde está o cordeiro para o
holocausto?
Surpreende a rapidez da resposta
de um homem idoso a quem essa pergunta deve ter golpeado fundo na alma:
__Deus mesmo há de prover o
cordeiro para o holocausto, “benní”.
Não era voz profética. Era a
saída que ele encontrou. E o texto diz que continuaram a caminhar juntos. O
verso 4 nos informa que esta foi uma caminhada de três dias! E é então que me
surge um outro pensamento: A lenha deveria ir nos lombos de um jumento ou sobre
um dos servos, mas suspeito que Abraão levava as brasas. Três dias de caminhada
cuidando para não deixar que as brasas se apagassem. Ora, as brasas eram para o
incêndio da lenha que consumiria o corpo morto do filho sacrificado, ou seja,
consumaria o sacrifício de maneira a não ter mais volta.
Se as brasas apagassem, teríamos
aí, talvez, boa desculpa para a não consumação do sacrifício.
O autor de Hebreus (11:19) nos
diz que Abraão cria, em seu coração, que Deus pode ressuscitar os mortos.
Talvez fosse esse o filete de esperança em meio ao trágico movimento daquela
pequena caravana de adoradores. Mas, depois de consumido pelo fogo, se operaria
a ressurreição? Lembremos que estamos num nível da Revelação ainda muito
precoce. Abraão não era detentor do conhecimento de Paulo sobre a ressurreição
do corpo, morto como uma semente. Vivia ainda a um tempo em que prevalecia a
idéia de que a ressurreição ocorreria a partir da sepultura. Mas ali estava o
fogo, mantido aceso três dias de jornada, que simbolizava a destruição de
qualquer vestígio de esperança.
Vem-me à mente que ao trabalhar
por preservar acesa a chama que finalizaria o sacrifício e a esperança, estava
Abraão prefigurando para nós a ordem divina passada quatro séculos depois a
Moisés: “Mantém a chama acesa; o fogo não pode se apagar” ( Levítico 6:12).
É possível que Abraão se servisse
desse fogo à noite para iluminar o descanso e trazer calor.
Manter a chama acesa era portanto
investir na preservação do propósito de chegar à consumação do sacrifício. Embora
fossem três dias, representavam toda a jornada.
E então me ocorrem alguns outros
desdobramentos:
Se Deus nos pedir o sacrifício
consumado de uma bênção que representa a finalidade de toda nossa existência,
faríamos a marcha da consumação?
Pensar na preservação da chama
que aquece nossa paixão, é fácil. Mas preservar aquela que vai nos levar a uma
perda definitiva e sem volta para Deus? Dia após dia?
Quando lemos a finalização do
relato, tanto em Gênesis quanto em Hebreus, respiramos aliviados nos
regozijando com Abraão e por Isaque, ainda olhando de soslaio para Deus. Mas há
algo que nos escapa: Deus impediu a morte de Isaque na hora undécima, porque
sabia que Abraão, de fato, já havia consumado o sacrifício em seu coração. O
simples fato do registro em Hebreus assumir que Abraão cria que Deus poderia
trazer de volta seu filho, prova que Abraão já o tinha como morto. Deus não
necessitava de mais nada.
Uma última ocorrência para nós,
está no fato de que embora Isaque voltasse vivo do monte, alguém morreu por ele
ali, em seu lugar: um cordeiro achado preso a um arbusto pelos chifres. Todos
nós gostamos desta finalização e seu possível significado.
Mas o final dela está nos versos
17 e 18 de Gênesis 22 – “Esteja certo de que o abençoarei e farei seus
descendentes tão numerosos como as estrelas do céu e como a areia das praias do
mar... porque você me obedeceu.”
E isto estabelece por fim, que um
sacrifício oferecido dentro da perspectiva de Deus (e
não segundo a fantasia de quem oferece) é um ato de obediência.
Pergunto: Teríamos aí outro
possível desdobramento - que nossos atos de obediência por fé representam um sacrifício
a favor de Deus? Bem, se não chega a tanto, podemos deixar que sobre isso fale
o profeta Samuel: “Acaso tem o Senhor tanto prazer em holocaustos e em
sacrifícios quanto em que se obedeça à Sua Palavra? A obediência é melhor do
que o sacrifício...” ( I Samuel 15:22).
Enquanto pisamos a trilha de
nossa carreira de fé, devemos manter acesa a chama, custe o que custar, para
que nunca se apague o fogo que há de levar nossa oferta de vida à consumação no
altar do Deus a Quem adoramos.
Mantenha viva a chama...que está em você... (II Timóteo 1:6).