quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Igreja: povo ou platéia?




Platéia é palavra que nos chegou do francês, para definir o público espectador, no português, embora naquela língua definisse melhor o espaço físico entre o palco e os bastidores, ocupado por esse público. Mas platéia, por sua vez, veio do grego em que o Novo Testamento foi escrito, significando ruas ou praças. Acredito que a diacronia da palavra atendeu exatamente a esta substituição: o continente pelo conteúdo, de maneira que os usuários da "platéia" passaram a ser identificados como tal.

Deus tem um povo formado na Sua graça, como Corpo de Aliança, com o nome bíblico de Igreja. Povo é designação própria daqueles que, participando da natureza divina por obra da regeneração que o Espírito Santo opera, viabilizada pelo resgate pago pelo sangue de Cristo, reage como a manifestação divina ao mundo, no exercício dos dons que recebeu, como testemunha eficaz e na condição de sacerdócio santo a favor desse mundo e no usufruto de sua íntima comunhão com o Deus Eterno.

Povo de Deus caracteriza homens e mulheres que, comprometidos com Ele, vivem a sua existência em acordo com esse compromisso, confessando e exercendo uma fé que é fruto da revelação que Deus dá de Sua vontade e Pessoa na Sua Palavra escrita.

Povo de Deus é constituído por crentes que, à semelhança dos irmãos tessalonicenses do primeiro século da era cristã, reagem com uma fé que só é cúltica porque é operosa, ou seja, realizadora, prática, testemunhal e bíblica. O viver do povo de Deus é um culto, e não o seu culto é que dita o seu viver.

Povo de Deus não é um amontoado de crentes com  objetivos afins, em um mesmo espaço físico, apenas. Povo é antes um organismo vivo, reagente e operante, que traduz seu encontro físico na observação do apóstolo Paulo em I Coríntios 14:26 - " Que fareis, pois, irmãos? Quando vos ajuntais, cada um de vós tem salmo, tem doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação. Faça-se tudo para edificação". Isto significa atitude, operosidade, dinamismo, vida no Espírito, sem espaço para espectadores.

Mas, é interessante notar que já nos dias da Igreja Primitiva, quando ela ainda estava mesmo dando seus primeiros passos, uma notória diferença já se fazia perceber entre povo e platéia. É o que nos registra o texto de Atos 5: 12-15. Todavia, a diferença torna-se mais sensível se vista no texto grego com as palavras com que Lucas o registrou. Vamos procurar percebê-las. Os grupos de pessoas estão bem caracterizados aí. No verso 12 vemo-los definidos pelo vocábulo povo ( laós, no grego) como aqueles crentes que se reuniam de comum acordo no pórtico de Salomão, entre os quais Deus operava sinais e maravilhas por meio dos apóstolos. O texto grego os define como "o povo formado pelos que de comum acordo estavam juntos". No verso 13, aparece de novo o vocábulo povo, agora designando um grupo que ficava à parte, com medo de ajuntar-se aos crentes, mas valorando os crentes pelo que eram. No verso 14 a palavra povo desaparece e é substituída pela expressão " homens e mulheres" que uma vez crentes, eram acrescentados ao povo que estava junto dos apóstolos. No verso 15, e chamo sua atenção em especial para este detalhe, a palavra povo também não aparece no texto grego, embora assim esteja em algumas versões em português, e dá lugar a uma outra forma de expressão: "os da platéia", ou seja, os das ruas; aqueles que levavam às ruas ( ou à platéia ) seus doentes. Quem eram estes? Leia o seu texto novamente! Eles não eram contados entre os três grupos anteriores. Lembre-se, a palavra povo do verso 15 não existe no texto original! Eles constituíam aqueles que não estavam junto dos crentes nem formavam corpo com os que se simpatizavam com os crentes, mas antes constituíam os que ocupavam a platéia (ruas),  para obterem algo de milagroso na vida dos seus necessitados. Eu diria que eles eram os usuários da fé com que a Igreja militava, mas não tinham parte nela. Há mais para vermos aqui: A Nova Versão Internacional traduz o verso 15 assim: " ...de modo que o povo também levava os doentes às ruas e os colocava em camas e macas, para que pelo menos a sombra de Pedro se projetasse sobre alguns, enquanto ele passava". A Versão Atualizada da Sociedade Bíblica assim traduz: " a ponto de levarem os enfermos até pelas ruas e os colocarem sobre leitos e macas, para que, ao passar Pedro, ao menos a sua sombra se projetasse nalguns deles". Esta versão faz parecer que o v.15 continua o v.14 de forma a fazer do grupo do verso 14 o mesmo do seguinte. No entanto não é assim.  Vou transcrever-lhes o texto dos dois versos o mais literal possível, desde o grego koinê, para que você perceba a diferença e participe com critério da conclusão que devemos fazer desta narrativa histórica: "Grande número de crentes eram acrescentados ao Senhor, da multidão de homens e mulheres, de sorte que também para as ruas ( platéia ) eram levados os doentes e colocados sobre camas e macas para que ao passar Pedro, tão somente a sombra se projetasse sobre eles".

Como vemos, há um quarto grupo aqui: os que ficavam na platéia. Agora observe o ponto não menos significativo: eram os da platéia que talvez pretendessem que a sombra de Pedro curaria seus doentes. Nem o texto atribui a Pedro tal fenômeno, nem o afirma sequer insinuando que isso ocorreu ou ocorresse. Todavia, numa leitura menos criteriosa, num contexto em que se fala em curas, sinais e maravilhas, geralmente tal expectativa da  "platéia" acaba validada em vários púlpitos atuais.

O que queremos ressaltar é que Deus não tem compromisso com a platéia, e sim com o povo. A platéia busca o fenômeno, o espetáculo, o sensacional; mas não se envolve, não se compromete. Apenas assiste, procura usufruir o espetáculo que outros realizam, mas não tem participação alguma nele. A platéia tanto está sujeita a fantasiar, quanto a crer na fantasia, de preferência se puder espiritualizá-la.

A Igreja não é constituída por platéia, mas por povo; e povo não assiste; atua, realiza, participa. A Igreja não teatraliza, não encena sua fé, embora alguns assumam templos com palco e auditório, tanto na forma quanto no discurso. A Igreja vive a fé realista onde todos são um em Cristo.