Na história da Igreja (Atos dos Apóstolos) três homens assomam como
elementos-chave na sua expansão, embora a narrativa do livro
não se ocupe deles por longos
trechos, como o faz com Pedro e Paulo. Esses homens são Estevão, Barnabé e Cornélio.
Estevão é o ponto de partida da dispersão da Igreja que começa sua missão histórica de descentralização para a diáspora que atende ao IDE de
Jesus. A partir da morte ou martírio de Estevão, a Igreja começa a sofrer uma perseguição que a põe “a caminho” para levar outros “ao Caminho”. É interessante observar que a “causa” da morte de Estevão gira em função de sua pregação ser entendida como ferindo os fundamentos da confissão judaica, porque o acusavam de pregar contra o templo (
Atos 6:14). Quando o tribunal religioso, a inquisição sacerdotal judaica, exigiu que ele se pronunciasse em sua
defesa, Estevão encerra seu longo discurso,
com ousadia, provando biblicamente a secundarização do templo, que eles reputavam como o marco visível de sua religião. Então o matam.
Barnabé emerge como o homem que
introduz Paulo, o perseguidor dos dispersos, agora convertido, para dentro da
Igreja, assumindo-o como convertido e servo de Cristo. E mais: coloca-se
companheiro daquele que se assume tendo como sinal de seu chamado, um
compromisso missionário, vocacional, para os
gentios, outro ponto crítico para a tolerância da fé judaica, e que custou a Paulo
tanta perseguição.
Cornélio é a porta pela qual a Igreja, representada por Pedro, passa
para recepcionar o novo povo, aqueles em quem Deus quer cumprir a promessa feita no início de tudo a Abraão: “Em ti serão benditas todas as famílias da terra”. E Cornélio, gentio, é o primeiro de um povo, com
sua casa, a debandar para a fé cristã, uma vez que já vivia afeiçoado à fé judaica, na qual não recebia permissão para nada além de ser um simpatizante, sob
o pomposo título de “temente a Deus”. Este título funcionava como uma categoria de aproximação religiosa, abaixo de um prosélito, como que tendo permissão para viver na periferia da religião dos judeus, sem circuncisão nem acesso às sinagogas, embora conhecido
como homem piedoso, que cria no Deus único de Israel.
A narrativa da história de Estevão ocupa apenas dois capítulos em todo o livro de Atos. Barnabé aparece em curtos relatos nos capítulos 4, 9,11,12,13,14 e a partir do capítulo 15 não é mais mencionado. Paulo vai referir-se a ele, com
cordialidade em suas epístolas de I Coríntios 9:6; Gálatas 2: 1, 9 e Colossenses
4:10. Embora, comparativamente a Paulo e Pedro, pouco citado, ele marca
indelevelmente a história da Igreja. Outro tanto
Cornélio ocupa apenas um capítulo do registro do livro, o capítulo 10, mas sua história fica em memória, marcante, tanto quanto suas orações diante de Deus.
Estevão,
o pilar da fidedignidade
Em Estevão temos não somente o primeiro mártir mas o caráter de uma confissão inegociável, fidelidade a princípios de fé e à Verdade. Por certo, ensinando no Templo, Estevão se expunha à ira dos fundamentalistas
judaicos ao repetir palavras de Jesus quando disse: “Vocês estão vendo tudo isto?... Eu lhes garanto que não ficará pedra sobre pedra; serão todas derrubadas” ( Mateus 24: 2). Foi quanto
deve ter bastado para que os judeus enfurecidos contra o fervor com que Estevão divulgava sua fé no seu Cristo e em Seus
ensinos, o acusassem e o levassem a julgamento.
Na oportunidade de discursar em sua própria defesa, ele bem poderia omitir o tópico que espicaçava, como ponto nevrálgico, a ira dos seus perseguidores: o Templo. Mas esconder
sua convicção era mais impossível que temer por sua vida. Ele cria agora numa fé que ousava dizer: “Deus não habita em templos feitos por mãos humanas” (Atos 17: 24), mas no coração do crente, que se torna o novo templo não erguido por mãos. A convicção nesta verdade, revelou-se maior que seu apego à vida ou maior que o respeito por paixões religiosas dos seus oponentes. Estevão sabia que ele e os demais cristãos, a Igreja, eram agora o único templo para Deus. Sabia ser verdadeira a fé que afirma: “Cristo é fiel como Filho sobre a casa de Deus; e esta casa somos nós” (Hebreus 3:6).
O lugar que esta testemunha ocupa é próprio àqueles cuja confissão é fruto de um fundamento de fé que não negocia, nem transige com
pressões externas, de qualquer ordem.
É significativo que a partir da
posição irremovível de uma confissão com esse porte, é que a Igreja começa a transitar e espalhar-se
para atender ao que determinou o Senhor: “Vocês me serão testemunhas tanto em Jerusalém quanto na Judéia e Samaria, e até aos confins da terra”.
Barnabé,
o pilar da koinonia
Barnabé, cujo nome aposto ao nome próprio José define o caráter de seu ministério, é descrito como aquele que consolava os irmãos, como um elo de ligação, e vai distinguir-se entre outros valores, aparecendo
como esteio a Paulo, e por conta disso, como alívio para a Igreja assustada, por conta da perseguição que lhe era movida.
Barnabé destaca-se como alguém capaz de discernir caráteres, porque encontrou o Paulo de quem todos fugiam, creu
no seu testemunho e atestou sua conversão. Figurava, nessa função, como o Espírito Santo, que na Trindade
Divina atende à função de Consolador, e atesta nossa filiação ao Corpo de Cristo e a Deus como filhos do Pai Celestial,
por meio de Jesus (Romanos 8:6). Consolador e confirmador, esse homem ocupa o
lugar do baluarte, pilar, que cabe a todo crente, em todo o tempo: a função de ser espírito de refrigério para os aflitos e desamparados, e ainda, capacitando-os
a confirmar o testemunho dos que crêem, levando-os ao batismo em
cumprimento à Palavra do Senhor.
Barnabé também desponta como aquele que consola socorrendo, provendo,
abrindo mão do que tem a favor de quem
tem menos ou nada tem ( Atos 4: 36 e 37).
Cornélio,
o pilar da piedade sem dogmas
O que podemos pensar à luz do texto acerca de Cornélio é o fato de que ele é o testemunho da quebra dos dogmas. Sua conversão mobiliza a Igreja de Jerusalém e rompe um dogma que poderia travar a marcha da Igreja já no seu nascedouro, repetindo nela a reclusão ou omissão do povo judeu, que na
contramão da proposta divina a Abraão (Gênesis 12:3) fechou-se em si
mesmo e pôs todos os outros “de fora” do acesso ao Deus Eterno.
Mas, além das implicações trazidas por sua conversão, a pessoa e a vida devocional de Cornélio são ainda hoje vias de
enfrentamento de dogmas que a Igreja reconstruiu ou reeditou e que ainda nos
afetam. Em Cornélio podemos estabelecer
paralelos com grupos ou situações que se aproximam de Deus de
forma semelhante, mas contrariamente às postulações que estabelecemos como ortodoxas para ditar ou creditar
um adorador como sendo “nosso”, ou do nosso jeito.
Parecia inevitável aos judeus reconhecer em
Cornélio um homem piedoso, porque o
texto de Atos 10 aponta-o como alguém que era piedoso nos moldes
dos dogmas judaicos, crendo num único Deus e Esse como o Deus
de Israel; em função disso, distribuidor de
esmolas e homem de oração, que se cercava de gente de
vida piedosa, tal como prescreviam os fariseus. Mas era incircunciso, romano e
ocupando as forças militares do inimigo, o
opressor político do povo de Deus. Não era sequer prosélito, ou seja, um gentio que
se achegou ao judaísmo aceitando seus ritos e
cumprindo as datas solenes desses rituais. Mas um adorador à distância, cuja vida parecia falar
mais que seus cultos, testificando do efeito destes, ou dos seus propósitos. Descobriu-se, pelo discurso de Pedro, que esse homem
que sabia trazer sua casa sob os mesmos princípios de temor a Deus que regiam sua vida, estava inteirado
dos fatos proféticos e políticos ocorridos nos últimos anos em Jerusalém, embora vivesse em Cesaréia. Ele sabia do ministério de Cristo e Sua morte, mas sabia históricamente, como quem lê as notícias em jornal. Necessitava da confirmação dessas coisas e de seus detalhes proféticos, ou seja, a relação delas com as profecias nas
quais cria embora sem acesso aos seus ensinamentos. Pedro lhe apresenta o
testemunho da ressurreição de Cristo e Cornélio crê. Mas destaca-se o fato de que
antes que Pedro a ele se chegue, Deus Se havia revelado a esse homem, aprovando
as ações de fé que praticava, fora das linhas “ortodoxas” do novo ensino do Caminho. O
anjo que lhe envia e que com ele fala, é um anjo de verdade, do céu, não de um grupo ou gueto de
religiosos. É um anjo tal e qual os anjos
que apareceram aos primeiros cristãos, e também a Maria, Zacarias, Paulo e outros. Adorador à distância e fora das “normas”, estava sendo aceito e
aprovado por Deus que lhe disse ter suas orações e atos de fé formando um memorial diante
de Sua face santa. Deus aceitava Cornélio e sua adoração, fora dos dogmas. Vale lembrar que os primeiros cristãos estavam ainda impregnados de dogmas judaicos. Por isso
mesmo, foi Cornélio o homem cuja conversão Deus usou para destruir os preconceitos religiosos de
Pedro, levando-o a admitir que Ele, o Deus Eterno, tanto não fazia acepção daquele homem em deferência aos “demais”, quanto não o tinha por imundo, conforme
os dogmas estabeleciam. Antes o tinha por um “purificado”. São palavras textuais de Atos 10: 28 e 34 e 11:9. A partir da convergência de sua fé pelas vias da revelação messiânica, então Cornélio e sua casa são batizados e aceitos como filhos de Deus, integrados à Igreja do Senhor nos mesmos direitos daqueles que
emergiram de uma “confissão” escriturística.
A conversão de Cornélio salta a nossos olhos como um grito divino de advertência à Igreja para deixar os
claustros de seus separatismos e ver os buscadores de Deus como o Deus eterno
os vê. A partir de Cornélio, nenhum outro “Pedro” precisa passar por êxtase arrebatador de sentidos
para que aceite o sentido real de Deus e cumpra sua missão de incluir os que O querem e não sabem como achá-Lo. E por “saber como achá-Lo” devemos pensar no evangelho puro e simples de Cristo, sem
as formas humanas, com seus caprichos, determinismos e exigências que pretendem deixar antes marcas de grupos do que
marcas do Reino nos filhos da salvação.
Cornélio desponta como o convertido
a partir de quem tudo mudou, que marcou a Igreja ao entrar nela, e por cuja
conversão a Igreja mudou, para melhor,
ou seja, para dentro da vontade divina e para fora do controle dos líderes religiosos.
Precisamos da encarnação desses perfis hoje, cada um
deles, em cada um de nós: fidedignidade de um Estêvão; capacidade de koinonia a todo preço, de um Barnabé; e conversão transformadora de convertidos, de um Cornélio.
Pr. Cleber Alho