domingo, 3 de janeiro de 2016

Pirão da Vida


Nosso texto se encontra em II Reis 4: 38-41: 

Depois Eliseu voltou a Gilgal. Nesse tempo a fome assolava a região. Quando os discípulos dos profetas estavam reunidos com ele, ordenou ao seu servo: Ponha o caldeirão no fogo e faça um ensopado para estes homens. Um deles foi ao campo apanhar legumes e encontrou uma trepadeira. Apanhou alguns de seus frutos e encheu deles o seu manto. Quando voltou, cortou-os em pedaços e colocou-os no caldeirão do ensopado, embora ninguém soubesse o que era. O ensopado foi servido aos homens, mas, logo que o provaram, gritaram: Homem de Deus, há morte na panela!” E não puderam mais tomá-lo.
Então Eliseu pediu um pouco de farinha, colocou no caldeirão e disse: Sirvam a todos. E já não havia mais perigo no caldeirão.
O texto imediato a este, que relata um novo milagre, nos informa que na casa, o seminário de Eliseu, havia cem homens. Era um lar de cem, mais o profeta. Mas era a casa deles. À volta, fome, sequidão. O profeta, a meu ver, já provoca a fé nos corações quando dá a ordem para a colheita de legumes no campo, num contexto em que a fome era predominante e consistia, como era comum, no estio que matava a planta no campo. Daí, nada surpreender que um mais entusiasmado saísse e colhesse e enchesse seu farnel com o que lhe pareceu uma leguminosa, mas que não passava de venenosa colocíntida, cujas folhas se assemelham as de uma vinha. Ela tem gosto amargo ao extremo e consiste num purgativo violento que pode produzir ulcerações nos intestinos, vindo a provocar a morte (Champlin, R.N., O Antigo Testamento Interpretado, v.3, 1ªed., 2000). O resultado foi que no caldeirão da sopa, acha-se a morte. Alguém prova e grita: Homem de Deus, há morte na panela!
E então eu me dou conta de que aquilo que foi feito como trivial, rotineiro, doméstico, consistindo no espaço da comunhão em família, tornara-se em veículo da morte. Nada há mais íntimo e aconchegante que a mesa de refeição doméstica. Ela tem o compromisso de fortalecer laços, preservar e investir na vida. No seu caldeirão cozinha-se e se serve bênçãos das quais todos participam na mesma medida. Este caldeirão tem a força de um ícone: a intimidade do lar.
Também me dou conta da comida que muitos caldeirões domésticos têm servido, por falta de discernimento e zelo, ou mesmo negligência com as desculpas da pressa que a pressão do dia a dia impõe. Caldeirões envenenados, porque neles se cozinham tudo que pode ser colhido sem filtros nem vigilância no campo de estio lá de fora, neste mundo tenebroso. Com a melhor das intenções deixa-se que as famílias se envenenem pela oferta imoral televisa, da internet, dos coleguismos e outros lixos de que se permite compor as mesas. Filhos se envenenam. Cônjuges se envenenam, sob o consentimento dos que servem o caldeirão doméstico. Às vezes mais literal do que aparenta, como o consentir no livre fluxo de embriagantes à mesa. E morrem! Morrem nas rupturas conjugais; nos extravios morais; no abandono  dos valores da vida; na rebeldia aos pais; nas drogas; nas bebidas (consentidas, estimuladas, porque servidas à mesa). Na imoralidade que prega sua mensagem através de piadas picantes, palavras de baixo calão, xingamentos, ofensas, tudo isso servido sob muitos dos tetos cristãos. Envenenam-se filhos e pais que comem nos caldeirões domésticos os filmes e programas não filtrados, eivados de pornografia, decididamente temperados com o gostinho picante do não faz mal” ou: eu sei o que faço. E morrem!
Relacionamentos superficiais; desmoronamentos conjugais; abandono da fé (que às vezes também se alimenta de colocíntidas disfarçadas de legumes servidos nos caldeirões eclesiásticos pelos pregoeiros da teologia da prosperidade). E por aí vai.
Mas havia na casa um homem de Deus. É de se esperar que nos lares cristãos haja um homem de Deus ou uma mulher de Deus a quem se recorra para deter a morte. E esse homem de Deus tinha a farinha que preparou o pirão da vida, em lugar da morte. Não se jogou o caldeirão e seu conteúdo fora. O que havia ali dentro, apesar de, era tudo e unicamente o que se produzia lá fora. O que ele fez foi lançar mão de um recurso seu, sua farinha, que funcionou como um antídoto do mal, neutralizando-o e convertendo a morte em vida. Como Deus fez conosco: não nos lançou fora, mas despejou o sangue de Seu Filho em nossas vidas, que converteu a morte em vida eterna.
Creio que em cada lar deve haver um homem ou mulher de Deus que tem a farinha para transformar o veneno em vida para a casa toda. Farinha que deitada no caldeirão do veneno neutraliza o mal. Eliseu sabia que havia farinha ali. Era usar. Creio que todos nós, em cujo coração o Espírito de Deus habita, temos a farinha que nos lembra o alimento trabalhado, previamente preparado e pronto para uso no momento oportuno. Ainda que terrível seja o veneno posto a cozer no caldeirão, nós temos a farinha que deitada nele, desfaz o mal e a morte: a palavra certa dita a seu tempo, neutralizando o veneno da intriga, da maledicência, do palavreado chulo, das ofensas. Como farinha também funcionam o afeto, o carinho, a repreensão, o testemunho que inspira e inverte a imagem corrompida que grassa à volta; a mensagem que guia, orienta e consola. Tudo isto e ainda mais, constitui a farinha da graça que não pode deixar de ser posta no caldeirão, a fim de produzir um pirão que vivifica e encaminha para a vida quantos dele se alimentem.
Que o Senhor nos agracie.

Nenhum comentário:

Postar um comentário